HGPFILHO escreveu:Tibete, paraíso e inferno
Com a abertura da ferrovia Pequim–Lhasa, os chineses tomam as ruas da capital tibetana. A tradição milenar budista corre o risco de submergir nos valores da nova China
FUTURO INCERTO
Um aspirante a monge no monastério Tashilhunpo, em Shigatse, espera o início dos cantos matinais. Qual será o futuro da nova geração de tibetanos?
Visitar o Tibete pode se transformar numa exaustiva aventura burocrática. Falta de liberdade, autoritarismo e obstáculos dificultam a viagem dos estrangeiros. Enquanto isso, o turismo doméstico tem um crescimento anual de mais de 50%. A estratégia de Pequim é levar ao Tibete seu modelo de desenvolvimento e fazer com que a população chinesa supere a tibetana nessa nação do Himalaia. O que restará da tradição e cultura do Tibete? O que acontecerá durante os meses que antecedem os Jogos Olímpicos?
De olho nas Olimpíadas, Hui Yu abriu uma pequena agência de turismo em Pequim há um ano. Ela garante obter a permissão do Escritório de Turismo Tibetano (TTB, sigla em inglês), documento essencial para qualquer estrangeiro chegar a Lhasa, capital da Região Autônoma do Tibete. “A autorização para viajar sozinho é mais difícil de conseguir que a permissão para um grupo. Mas meu noivo é filho de militares e temos excelentes conexões com as autoridades”, diz. “Preciso de 600 iuanes (R$ 150) para agilizar o pedido.” Hui Yu também se encarrega de comprar meu bilhete-leito no trem Pequim–Lhasa, em funcionamento desde julho de 2006.
Faltam quatro dias para embarcar quando recebo uma mensagem de Hui Yu. “Todos os leitos do trem foram requisitados pelas autoridades. Não consegui nenhum bilhete”, afirma. Nem mesmo os 400 iuanes (R$ 100), que seriam entregues como propina ao funcionário da estação, resolvem. “Você só pode ir de avião. Não posso discutir com as autoridades. Elas têm preferência.” Também não discuto com Hui Yu: a China vive sob um regime autoritário e turista não tem voz.
No avião, faço as contas: 95% dos passageiros são chineses. Converso com os poucos estrangeiros que confirmam a dificuldade para chegar a Lhasa e a impossibilidade de conseguir espaço no trem. Para os chineses é mais fácil. Nenhum documento é solicitado. Eu havia sido prevenido pelo sueco Jan Wigsten, especialista em ecoturismo: “Lhasa mudou muito nos últimos 20 anos. Você não vai encontrar uma Shangri-lá perdida no Himalaia”. Se não fosse pelo Potala, o palácio que serviu de residência para o Dalai-Lama e hoje é um museu, empoleirado no topo de Marpo Ri, o Morro Vermelho, eu poderia achar que havia aterrissado em qualquer cidade moderna asiática.
ONDE ESTÃO OS JOVENS?
O Potala deixou de ser o centro espiritual e político do Tibete para se transformar em museu, com tempo restrito de visitação. Anciões, com suas rodas de preces e bandeiras de orações, visitam templos e mosteiros
O Tibete revelou-se como nação no século VII. Laços matrimoniais criaram poderosas alianças com o Nepal e a China. Nessa época, o budismo chegou ao Himalaia e instalou-se como religião oficial. Para conter a expansão tibetana na China, os dois países assinaram um tratado de paz em 822, reconhecendo fronteiras. No século XIII, o budismo tibetano tornou-se a religião oficial do império mongol por ordem de Godam Khan, neto de Gêngis Khan, e as relações entre Tibete e Mongólia saíram reforçadas. Aliás, o quarto Dalai-Lama era da Mongólia (a palavra dalai é mongol e significa oceano). Durante os séculos seguintes, chineses, mongóis e tibetanos travaram complexas batalhas políticas. Russos e ingleses entraram no cenário no século XIX, também disputando o rico altiplano tibetano.
Em outubro de 1950, o Tibete foi ocupado por militares chineses, sob o pretexto de “libertar o país do imperialismo inglês”. De lá para cá, mais de 1 milhão de tibetanos pereceram sob as armas chinesas e centenas de monastérios foram destruídos. Hoje, todo o 1,3 bilhão de chineses estão convencidos de que o Tibete sempre fez parte da Pátria Mãe. Para os tibetanos, sua nação possui uma história, um idioma e uma cultura próprios – é um país independente. Não deveria fazer parte da China. Entretanto, a possibilidade de um Tibete livre parece estar cada vez mais longe. Até mesmo o Dalai-Lama estaria satisfeito com uma maior autonomia e respeito às tradições, em lugar de uma independência irrestrita, sonho inatingível neste momento. Nas últimas duas décadas, o domínio chinês tornou-se mais sutil: o controle alastra-se por causa da imposição de sua cultura e de uma grande transmigração. Segundo o Centro de Informação China-Tibete, 87% dos 400 mil habitantes da província de Lhasa são de origem tibetana. Isso significaria que apenas 13% seriam chineses. Minha impressão é oposta: vejo nas ruas mais chineses que tibetanos.
Tento buscar mais informações, mas o assunto é delicado. Os tibetanos e chineses mais liberais têm medo de se identificar ao fazer qualquer comentário sobre a população. “O trem vem diariamente cheio. Mas retorna apenas com a metade de passageiros. Milhares de chineses chegam por semana a Lhasa e não regressam”, diz um comerciante do bairro da estação ferroviária. Segundo o guia de viagem australiano Lonely Planet Tibet, os tibetanos em Lhasa não passam da metade. Outras fontes consideram que, de cada quatro habitantes da capital, três são de origem chinesa, ou seja 75%. “Assistimos a uma segunda invasão de nosso país, muito pior que a ocorrida na década de 50”, afirma Dorje, um operador de turismo, natural de Shigatse, a segunda cidade do país. “Todos os melhores empregos – no governo ou nas empresas públicas – caem nas mãos dos chineses. Somos excluídos em nossa própria terra.” Como um bom budista, Dorje não demonstra raiva contra a administração chinesa, mas completa: “Por favor, não coloque meu nome completo, posso ser preso por dizer isso”.
Começo a entender a equação do turismo doméstico e internacional. Se a capacidade hoteleira é limitada, por que correr o risco de receber estrangeiros que, intrinsecamente, simpatizam com a causa da liberação do Tibete e vêem o atual 14º Dalai-Lama como um grande líder espiritual? A estratégia chinesa é clássica: encher aviões e trens com turistas domésticos, ocupar o maior espaço possível e deixar o restante para os forasteiros. As autoridades da Região Autônoma do Tibete afirmam que cerca de 3,7 milhões de pessoas chegaram à região nos primeiros dez meses de 2007. O número de estrangeiros foi de 10%. Na semana do último feriadão nacional, de 1o a 7 de outubro, cerca de 400 mil chineses desembarcaram em Lhasa. “O turismo doméstico não traz nenhum benefício. Ninguém ganha com passeios, alojamento e alimentação. Está tudo a preço de custo”, diz Dorje. “E por que funciona? Os chineses levam de volta um mínimo de dez presentes para a família. As agências sobrevivem da comissão das vendas.” Os estrangeiros no Tibete são vistos por Pequim como visitantes secundários, mesmo se deixam divisas. “O governo está rico e não se importa com os poucos euros ou dólares trazidos pelos turistas. Essa tática é política, não econômica”, afirma Dorje.
A situação dos visitantes estrangeiros complicou-se a partir de 25 de abril de 2007, quando três ativistas (dois californianos e um tibetano) substituíram a bandeira chinesa pela tibetana no Acampamento Base do Everest. Em seguida, abriram uma faixa com os dizeres dos Jogos Olímpicos 2008, One World, One Dream (Um Mundo, Um Sonho), com um recado adicional: Free Tibet. O manifesto foi filmado e distribuído mundo afora pelo YouTube. As autoridades chinesas ficaram enfurecidas com os autores e com o movimento Estudantes para um Tibete Livre. Conseguiram prender os militantes e expulsá-los do país. Em retaliação, puniram todos os envolvidos. “A agência de turismo contratada foi fechada. O motorista que os transportou de Lhasa ao Acampamento Base só não foi para a prisão porque era chinês. Depois disso, ficou mais difícil para um estrangeiro viajar para o interior do Tibete. Isso complicou nosso trabalho”, diz Dorje.
“Não coloque meu nome completo, posso ser preso por dizer isso”, afirma o tibetano Dorje
Para melhor compreender o inferno burocrático vivido por um estrangeiro que deseja conhecer a região, percorro agências locais e converso com viajantes. A permissão para o Tibete – aquela comprada em Pequim – dá direito a aterrissar em Lhasa. Nada mais. Se o turista pretende sair da capital, precisa de uma nova autorização do TTB e outra da Segurança Pública (PSB). Ambas as instituições estão nas mãos do governo chinês. Para quem viaja sozinho, como eu, conseguir uma permissão individual é ainda mais complicado. As autoridades chinesas facilitam a papelada apenas para os turistas que viajam em grupo, sobre os quais a PSB tem mais controle.
Enquanto não resolvo como sair de Lhasa, tento visitar o Potala. Todos confirmam que é um calvário conseguir entrar no que era o antigo centro espiritual e político do Tibete. É preciso obter um passe que me dará o direito de comprar a entrada no dia seguinte. O preço é o mesmo para todos – chineses ou estrangeiros pagam 100 iuanes (R$ 25). Os peregrinos budistas pagam uma taxa simbólica. As autoridades chinesas permitem a entrada de 2.300 pessoas por dia. Deste total, 1.600 ingressos estão reservados para grupos. O resto é para viajantes individuais e peregrinos. Caminho até o Potala e, na portinha fechada do guichê, leio: “Não há mais passes para amanhã”. A procura é maior que a oferta. “A solução é entrar na fila às 5 horas, perder seis horas do dia e rezar para o guichê não fechar na sua frente”, diz Rita Moreno, uma turista portuguesa.
CIRCUITO DA FÉ
Devotos contornam o templo Jokhang sempre no sentido horário
Ao contrário das áreas modernas de Lhasa, o bairro tibetano possui alma e, como um sábio ancião, tem séculos de histórias para contar. Reconstruída no ano 2000, a Praça Barkhor é o coração do bairro. Ela é tão vital que é constantemente vigiada pela máquina da segurança chinesa. Uma câmera no topo de um prédio registra o movimento. Dezenas de estandes vendem produtos básicos aos devotos. Cruzo a praça, com a atenção voltada à fumaça que sai do sangkang, local onde se queima incenso. Parecido com um grande forno, o megaincensário recebe ramos de zimbro, uma conífera. Todo peregrino joga um pequeno galho no fogaréu, junto com uma colherada de tsama, a farinha de cevada tostada. A poucos metros está o Templo Jokhang, o centro espiritual mais visitado do país.
A porta do Jokhang exclusiva para os peregrinos está aberta. Acanhado, entro e sigo os fiéis. Um monge vem conversar comigo. Ele quer treinar seu inglês e sabe que os estrangeiros simpatizam com a causa tibetana. Depois de 30 minutos de um diálogo trivial, ele passa a contar que o controle chinês é intimidante: o número de monges em Jokhang não pode crescer e seus movimentos são limitados. Apesar de estar em seu país, ele se sente como em uma jaula. Nele, testemunho a coragem da alma tibetana. Mesmo sob o mando chinês, a energia espiritual das pessoas é forte. Também constato um futuro desafio: vejo poucos jovens. Por quantas décadas o Tibete manterá seu vigor religioso?
ESPERANÇA
A monja budista Todzi, de 18 anos, em peregrinação; crianças oram num mosteiro; e um jovem monge bebe um tradicional chá salgado com manteiga de iaque (abaixo). A continuidade da cultura tibetana depende das novas gerações
Não sei se foram meus mantras ou minha determinação, mas logro entrar no Potala. Tashi, um comerciante influente que trabalhou em turismo, possui três passes. Um australiano, que já havia visitado o palácio, não faz questão de regressar. Tashi simpatizou comigo e me ofereceu o passe de graça. Só que eu tenho de fingir ser australiano. No dia seguinte, chego antes das 8 horas ao portão de entrada. O guia, Mingma, avisa que podemos ter um problema por causa da nacionalidade. Dito e feito. Quando o oficial chinês compara o nome do australiano na lista com o que está em meu passaporte, faz uma cara feia e diz que não posso passar. Mingma imediatamente entra em ação. Leva o oficial para o canto da sala e conta alguma história para o oficial chinês, em voz suave. Minutos depois, o grupo das 8 horas sobe a escadaria – e eu estou dentro. A visita desenhada pelas autoridades chinesas começa pelo lado leste e termina no lado oeste, no sentido oposto à tradição tibetana. Será que o governo faz isso só para incomodar os peregrinos tibetanos? Mingma acredita que sim. “Os chineses são sutis. E cruéis em suas punições.” Enquanto subimos, ele sussurra que já esteve preso. Encontraram dentro de um de seus livros uma foto dele junto com o Dalai-Lama. Estivera numa reunião com o líder político e espiritual tibetano em seu exílio, na Índia. As autoridades consideraram que Mingma fazia parte de um grupo de resistência tibetana. Ele passou 28 dias na cadeia.
O Potala é um dos raros locais turísticos onde é proibido fotografar. Lá dentro, vários soldados, fardados ou não, estão de olho nos estrangeiros, chineses e até peregrinos para que todos sigam a regra. Os templos que encobrem os restos mortais de vários dalai-lamas impressionam. Mas Mingma diz que não posso ficar parado, a observar cada detalhe. “O percurso deve ser feito em 60 minutos. Precisamos sair do Potala às 9h06 em ponto”, afirma. E o que acontece se uma visita se prolongar por 15 minutos adicionais? “Muito simples”, diz Mingma. “Na próxima vez em que eu vier, cinco turistas meus serão barrados. Os chineses são mestres em retaliação.”
Enquanto espero minha viagem ao interior, visito os monastérios de Drepung e Sera, ao redor de Lhasa. Os monastérios representam o símbolo da cultura dessa nação. Converso com vários monges para medir a temperatura política. Alguns possuem no altar uma imagem do Dalai-Lama. “Por favor, não fotografe. Se sua foto cair nas mãos dos chineses, eu serei preso”, diz um monge, levando os dedos juntos ao pescoço e fazendo um movimento de degolação. No Tibete, paraíso e inferno convivem lado a lado.
Os chineses não devolverão facilmente esse tesouro a seus donos. É uma terra fértil, e o subsolo contém fortunas: cobre, zinco e até urânio. As reservas de minério de ferro podem suprir até 20% da necessidade da China. Hoje, o que a China oferece – é o maior mercado consumidor potencial e o produtor mais barato de bens de consumo – é vital para o capitalismo do século XXI. Ainda que não exista liberdade de expressão na China e no Tibete e que os direitos humanos sejam violados constantemente, o mundo parece se calar.
O sorriso de Todzi simboliza a esperança da cultura tibetana de sobreviver à colonização chinesa
Minha última conversa com Mingma é sobre o destino de seu país. Ele é pessimista. Acha que, quando a atual geração de devotos desaparecer, a religião também se esvaecerá. “Junto com a religião, perderemos nossas tradições”, afirma. Lembro as dezenas de anciões que encontrei em Drepung ou Shigatse. Seus filhos e netos seguirão o caminho do Buda? Ou a nova geração passará a adorar outros valores? Também penso em Todzi, uma monja budista que encontrei no mosteiro Sera. Ela simboliza um futuro bem mais promissor. Todzi é tibetana e vive em Sichuan, na China. Com apenas 18 anos, veio ao Tibete fazer sua primeira peregrinação. Seu sorriso, junto de uma imagem do Buda pintada na pedra, representa a esperança de que a cultura tibetana possa sobreviver à colonização chinesa.
Os Jogos Olímpicos de agosto de 2008 serão um marco histórico para a China, que pretende mostrar ao mundo os resultados da rápida modernização do país. Os tibetanos e os que simpatizam com sua causa vêem os oito primeiros meses do ano como uma oportunidade única para divulgar a necessidade de maior autonomia para o Tibete. A lógica seria que o governo chinês, para não manchar sua imagem antes das Olimpíadas, evitasse tomar medidas drásticas contra qualquer manifestação. Mas, em 17 de outubro, a homenagem do Congresso dos Estados Unidos ao Dalai-Lama – ele foi condecorado com a Medalha de Ouro – enfureceu o governo chinês, que endureceu sua política no Tibete. Para evitar demonstrações de apoio ao líder tibetano, o monastério Drepung foi cercado pela polícia chinesa e permaneceu trancado durante dez dias. Os devotos em Lhasa foram obrigados a homenagear o Dalai-Lama em silêncio, apenas queimando profusamente dezenas de quilos de zimbro nos incensários do Templo Jokhang (a fumaça é considerada uma oferenda).
O governo de Pequim terá um sério desafio em 2008, pois sabe que ativistas aproveitarão os Jogos para denunciar a política chinesa de direitos humanos no Tibete. Se não reagir, o governo, mesmo se um pouco envergonhado, garantirá sua boa imagem. Se reprimir os protestos com força policial (o que tem acontecido), poderá provocar um escândalo internacional, já que a mídia global estará de olho no país. Um possível recurso é considerar qualquer manifestante pró-Tibete como terrorista. Essa tática é dificultada pelo fato de os tibetanos seguirem a doutrina budista da não-violência. O mundo estará atento: o pacote das Olimpíadas de Pequim é bem maior que as competições esportivas.
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